O orçamento acaba por refletir, em grande medida, a personalidade de uma pessoa e, por quê não, a sua filosofia de vida. Não deveria ser diferente já que nele se encontra suas decisões alocativas, que, se pressupõe, são baseadas em suas preferências e interesses. Mas há fatos subterrâneos que acabam impactando os julgamentos e decisões das pessoas quanto a essas alocações. Isto é, por mais conscientes que buscamos ser na construção de um orçamento, há elementos inconscientes que o afiguram.
Desse modo, como se não bastasse os elementos sensíveis aos sentidos desafiarem os nossos planos orçamentários, em última instância nosso projeto de vida, acabamos por ser solapados, ou melhor, autossabotados por questões invisíveis. Entre essas questões poderíamos enumerar algumas, tais como: validação e pertencimento social, sinalizações externa de símbolos de valor social, afetos e emoções, e assim por diante. Na verdade, existe um universo de questões sociais e cognitivas que nos levam no piloto automático, pior, dando a impressão que estamos no controle. Tentaremos, neste texto, abordar o embate que travamos contra os impulsos e sugestões do inconsciente e também das sugestões atraentes (aqueles estímulos que nos cativa) provocadas pelo ambiente externo que podem estremecer qualquer planejamento financeiro. Mais especificamente, falaremos da matéria de autocontrole e o impacto que a carga cognitiva pode desempenha no sucesso ou fracasso desse embate.
“Algo pensa em mim.” Nietzsche
Somos seres sugestionáveis; não incrivelmente sugestionáveis, mas embaraçosamente sugestionáveis. Veja se você já vivenciou esse roteiro ou algo parecido: Uma propaganda encantadora do novo palio, vermelho incandescente, design espetacular e uma sensação, transmitida pelo material publicitário, de conforto último. Você é amante de carro. Achou legal a propaganda. Nas próximas horas de TV, é bem provável que qualquer tema relacionado a carro se sobressaia, nas diversas programações que está assistindo. Dias posteriores, você pode ter uma particular atenção voltada a carros, sobretudo aquele modelo da propaganda. Vê tantos carros similares àquele que parece que todos o estão comprando. Parece que só estão fabricando ele. Até o momento em que você assume que só pode ser um sinal dos céus. É seu destino tê-lo. E você o compra. Você sai da concessionária crente que foi o protagonista dessa decisão e já está cheio de razões que corroboram e justificam (incluindo razões financeiras) o porquê dela. Porém, o real autor dessa compra foi o marketeiro da Volks. Você acabou sendo fisgado por um principio cognitivo chamado de efeito priming; descoberto recentemente por cientistas, mas usado desde sempre por vendedores. Este é um exemplo, dos de vários, do como estamos expostos a sugestões atraentes e pelos impulsos por elas provocados.
É fato elementar da vida que escolhemos o que pedir, mas não escolhemos o que gostamos. O Animal Social
Tentar vencer tais impulsos, seja desenvolvido pelo inconsciente, seja produzido por artefatos externos (como o descrito no parágrafo predecessor); é, não de outro modo, uma batalha a ser travada; sobretudo, se é nosso futuro que está em jogo. Mas não será moleza, e não deveríamos pensar que seria. Pois os mecanismos internos que os processam, fazem das sugestões atraentes uma conexão causal com recompensas anteriormente experimentadas e vivenciadas. Antecipando, assim, uma experiência positiva que tivemos. Ficamos, então, tentados a repeti-la. Gerando o impulso ou deflagrando um hábito. Além disso, há a racionalização post hoc ou, como rotulado por Dan Ariely, a mentira racional em que transfiguramos algo irracional em algo racional por meio de justificações e explicações. Diante disso, como enfrentarmos os impulsos que acometem nossas finanças?
A primeira coisa que se pensa é o autoconhecimento. Reconhecermos que somos falhos a cair em truques e artimanhas que nos provocam ilusões cognitivas e/ou sensoriais e tentarmos identificar em quais momentos, circunstâncias ou situações em que elas, mais provavelmente, aparecem. Depois, poderíamos pensar no ato de definirmos objetivos e metas de curto, médio e longo prazos claros e, em especial, emocionalmente carregados. Entender que o eu consciente nem sempre está nas rédeas e, portanto, precisa ser mais atuante no que se passa pela cabeça é outra forma. Mas o instrumento mais utilizado e necessário é a autorregulação, a força de vontade. Contudo, tal instrumentalização para o combate dos impulsos não é, de forma alguma, ilimitado. Nossa autorregulação se esgota, se esvai a cada uso. O que se chama de esgotamento do ego. No fim do dia, provavelmente, nos autossabotamos em função disso. Podemos, inclusive, ligar o foda-se e entregarmos a enésima potência ao impulso que antes tentamos evitar ou outros nem relacionados a ele. Podemos fazer, desse modo, compras desenfreadas, compras impensadas, gastarmos com comida e outros prazeres e etc. Há evidências em estudos que o esgotamento do ego é promovido pela alta carga cognitiva empreendida no dia-a-dia, ou seja, pelos esforços da vida cotidiana.
Porém, em estudos recentes, sugerem que, ao contrário, a alta carga cognitiva pode ser nossa aliada no combate aos impulsos. No artigo Turning a Blind Eye to Temptation: How Cognitive Load Can Facilitate Self-Regulation, os autores evidenciaram os efeitos que um ego esgotado pode ter na captura das sugestões atraentes. Nesse estudo, observou-se que a alta carga cognitiva pode nos deixar cegos a sugestões atraentes, de modo que nem a percebamos para começo de conversa. Para sermos sucintos, a cegueira a tentações é provocada pelo fato de que também se exigem recursos cognitivos para capturá-las e processá-las (o mecanismo interno que descrevemos em parágrafos anteriores), e quando não se tem esse recurso, o cérebro a nivela com os demais estímulos do ambiente. Assim, o que era percebido antes como mais proeminente, destacado e até maior a nossa vista; é agora percebido como neutro, comum, pois os recursos estão escassos, a atenção seletiva prejudicada e a maquinhinha da associação dos prazeres nem liga mais. E é surpreendente isso, pois se não percebemos tentações, não gastamos recursos cognitivos preciosos para o autocontrole. Temos, então, mais força de vontade para momentos necessários.
Contudo, temos alguns problemas práticos no uso desse conhecimento. Em primeiro lugar, é preciso que estejamos desgastados antes da exposição a sugestões atraentes. Caso contrário, a alta carga cognitiva pode nos levar a ceder às tentações. E isso é difícil de antecipar, pois as tentações aparecem aleatoriamente no dia-a-dia. Num outro ponto, não está claro se sobrecarga intencional teria efeito, já que os autores não abordaram essa alternativa nos estudos. Se fosse efetivo, poderíamos nos preparar antes como, por exemplo, a ida ao shopping. Assim, tentemos reter na memória um conjunto de oito números durante o passeio (a retenção de grandes números na memória de trabalho provoca alta carga cognitiva) ou iniciemos uma discussão controversa ou muito estimulante com nosso acompanhante (se expuser a tentações, só saia com um bolsonarista, petista ou com o amor da sua vida). Por fim, estudos controlados, feitos em laboratório, os efeitos podem não ser os mesmos quando num ambiente externo (a realidade pode ser mais complexa). Ou seja, no laboratório, observa-se a mecânica do efeito, apenas.
Bem, o final desse texto pareceu o modis operandi de político: seduzimos com uma solução interessante e, imediatamente após, a retiramos da lista. Mas nem otimismo alardeado nem pessimismo injustificado. Os cientistas nos mostraram um caminho interessante; cabe a nós, planejadores financeiros, ou você mesmo leitor testá-las na vida real e vê sua possivel aplicabilidade em diversas circunstâncias ou cenários. E se mostrarão válidas ou não. Além do mais, a evidência da possibilidade de omitir as sugestões atraentes dos nossos sentidos deve ser vista como complemento aos outros estudos da psicologia econômica. Isso quer dizer que deveríamos usar um mister de estratagemas baseadas no que já conhecemos da nosso comportamento para salvaguardar nossa autorregulação. Perceba, então, que o simples conhecimento desses estudos já é por si só suficiente, pois é aqui uma forma de nos autoconhecermos e sabermos nossas vulnerabilidades; posicionando-nos, então, de acordo, a despeito da sua aplicabilidade real. Desse modo, protegemos nossa força de vontade pelo conhecimento ou pela aplicação deste.
“Tenho-me esforçado por não rir das ações humanas, por não deplorá-las nem odiá-las, mas por entendê-las.” Spinoza.
Portanto, os achados dos estudos sobre a cegueira a sugestões atraentes se juntam a tudo o mais que conhecemos sobre a cognição humana dando-nos um reforço ao nosso combate contra os efeitos deletérios dos impulsos ao nosso orçamento pessoal. Podendo criar, inclusive, arranjos práticos reais sobre o estudo e testá-lo na vida cotidiana. Caso impossível, a simples ideia trazida já é suficiente por nos trazer à luz algo tão obscuro do que nós mesmos.
Texto: Yuri Mourão – Especialista em Finanças e Controladoria – Ibmec Business School