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sexta-feira, 20 setembro 2024
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Pobreza Mauvediça – Parte 1

Parece que, na atual conjectura social, o grande jogo da vida é superar os infortúnios econômicos que foram impostos, ao que tudo indica, pelo menos, aleatoriamente a maioria de nós. Objetivamos conquistas em sua maioria atreladas a figuras ou significados econômicos. Adjetivos socialmente valorizados seguem, em geral, a mesma linha; e queremos estar, então, associados a eles. Parece que a vida se resume a essas conquistas e em suas maximizações. Apesar de soar restritivo e perigoso resumir a vida assim, os sinais e incentivos transmitidos pela sociedade em sua perseguição e conquista são válidos. Pois, se assumirmos que o propósito último da vida é as liberdades dos indivíduos de agir, ser e se desenvolver, não se pode excluir os progressos econômicos dessa equação. Em razão de que eles são ou parecem ser fundamentais para aquelas conquistas, ou seja, as capacitações necessárias para as liberdades envolvem bens econômicos. Dito isso, o progresso econômico é uma parte das diversidades aceitas e necessárias ao propósito da vida (poderíamos contestar a intensidade e a prioridade dada a ele sobre os demais). Contudo, a jornada para a superação do infortúnio econômico parecer ser bem mais complicada do que se acredita. Assim, deixando o eufemismo por aqui, a pobreza ou a sensação de ser pobre pode ela mesma ser uma barreira, deixando-nos mais debilitados em sua fuga. Neste texto, tentaremos elucidar os efeitos deletérios que a pobreza tem em si mesma, precisamente seu impacto na cognição e, consequentemente, na tendência a priorizar comportamentos economicamente indesejáveis.

O propósito último da vida é as liberdades dos indivíduos de agir, ser e se desenvolver.

A pobreza é um daqueles assuntos que dificilmente seus interlocutores se incluem nela voluntariamente, isto é, parecem discursar sobre ela com certo distanciamento que dá a entender que eles não fazem parte desse universo. Ao discursar, quase ninguém assume que se encontra nessa situação. Pode ser por uma questão de receio da estigmatização social ou por pura dissociação. Assim, sempre jogam a experiência da pobreza para aquém da sua própria realidade econômica; embasados, contudo, num conceito de pobreza com definições arbitrárias tal como é a pobreza absoluta dos informes governamentais. Seja como for, aparentemente, a pobreza percebida independe da classe econômica. Dessa forma, ela é definida pelos efeitos sentidos, independentemente dos níveis de renda. Assim, a sensação de desconforto ou descontrole financeiro, a sensação de baixo controle das circunstâncias da vida, o medo da exclusão sociocultural, a percepção de insuficiência no atendimento de necessidades ou acesso a mercados, o medo da exposição a choques orçamentários, o receio de não ter linhas de crédito para emergências ou tê-las com taxas predatórias, o sentimento de incômodo de ter que fazer escolhas difíceis a todo o momento e muitas outras configuram, em algum grau, as condições estruturais típicas de ser pobre.

Os indivíduos, então, nessa situação sofrem, apesar de poderem ter as necessidades básicas atendidas, de medos e anseios quanto ao futuro, da manutenção daquilo que construíram e se acostumaram a viver e, do mais importante, da impressão de que suas liberdades estão sendo restringidas ou minadas. Desse modo, a pobreza é uma realidade presente na vida de bem mais pessoas do que imaginamos e do que as métricas convencionais, como a pobreza absoluta, registram. É claro que o fantasma da pobreza se tangibiliza cada vez mais à medida que percorremos fluxo abaixo na pirâmide socioeconômica, tornando seus efeitos cada vez mais perceptíveis. Mas, isso não elimina os impactos que ela tem nas outras classes, sobretudo as intermediárias.

Contudo, a jornada para a superação do infortúnio econômico parecer ser bem mais complicada do que se acredita.

Sabendo, assim, da abrangência que a (sensação de) pobreza pode ter, e que suas causas podem ser diversas, como um sistema emergente explicado por David Brooks em O animal social; podemos, agora, por luz em uma delas.

 Em trabalhos de pesquisa recentes, autores buscaram evidenciar o papel que os efeitos da pobreza exercem nos indivíduos em um nível elementar, isto é, em seus mecanismos cognitivos e psicológicos. Assim, a pobreza pode desenvolver desvantagens adicionais aos pobres na sua busca de vencê-la e na competição com aqueles que não a vivenciaram. Em On the psychology of porverty, os autores reuniram uma coleção de estudos científicos sobre o tema em que tentaram ligar, em um efeito causal, a pobreza, as emoções negativas e os comportamentos economicamente contraproducentes. Em seus materiais de pesquisa, foi observado que a pobreza estimula aspectos psicológicos adversos tais como estresse e afetos negativos (medo, raiva, angústia, tristeza e etc.) decorrentes de situações características experimentadas por indivíduos no estado de pobreza (choques de renda, orçamento limitado e insuficiente, restrições de liquidez etc.).

Como isso se daria? Bem, como vimos, há certas condições estruturais características na vida dos pobres e elas podem desencadear comportamentos inadequados num ponto de vista econômico. Ou seja, ao estarem inseridos nesse conjunto de estruturas, os pobres podem apresentar elevado grau de aversão ao risco e excessiva alocação de recursos e esforços no tempo presente em detrimento ao tempo futuro (o que é chamado de taxa de desconto intertemporal). Ressalta-se, ainda, que esses comportamentos não são necessariamente predisposições naturais desses indivíduos, o que quer dizer que aquelas circunstâncias podem ser impositivas a esses comportamentos e não algo que esses indivíduos naturalmente fariam. Portanto, nessas circunstâncias, os pobres podem ser levados ou impostos a agir inadequadamente. Essa constatação é relevante, pois conforme se sabe e é amplamente reconhecido, pelo menos na economia tradicional, que o grau de aversão ao risco e a taxa de desconto intertemporal são variáveis correlacionadas à riqueza e à renda. Dito de outro modo, são variáveis necessárias para a determinação da renda e da riqueza das pessoas. Para piorar as coisas, o estado deletério da pobreza desperta nas pessoas sensações gerais de estresse e afeto negativo, as quais têm implicações, evidenciadas em estudos, naquelas variáveis. Com isso, percebemos um potencial elemento autorreforçador daqueles comportamentos economicamente inadequados mantidos pelos pobres.

Além desses, o mesmo estudo apresentou algum tipo de impacto nos recursos cognitivos dos pobres, onde aquelas situações e seus respectivos estados emocionais podem consumir parte destes; afetando, assim, sua capacidade de autocontrole. Por exemplo, num hipotético conflito entre escolhas igualmente difíceis promovidas por um orçamento limitado ou a expectativa de uma ruptura da renda, os pobres desgastados com a tentativa de resolver tais situações se veriam propensos, por meio de um ego esgotado, a sucumbir às tentações atraentes, não necessariamente desejáveis na ótica econômica, tais como o adiantamento de recompensas ou gratificações. Ou seja, apresentariam uma forte tendência em escolher um entretenimento qualquer ou o próprio descanso do que opções potenciais de melhorias da situação presente ou abdicar de uma renda menor hoje para uma maior no futuro. Como argumentado por Dang at al. (2013), esse comportamento pode ser fruto de (ou ser reforçado por) uma sensação de privação, onde o indivíduo escolheria o imediatismo como forma de satisfazer aquilo que lhe é, por muito tempo, escasso.

Outro resultado, mencionado no estudo, e relacionado a um autocontrole debilitado, assim como ao estresse e ao afeto negativo, é a propensão da manutenção do comportamento habitual em detrimento de uma mudança deliberada no comportamento visando um objetivo mais desejável. Em outras palavras, a incapacidade de mudar hábitos. Dessa forma, como exemplo, o individuo pobre, visando investir mais tempo em mais educação, veria sua intenção frustrada ao não resistir aquele hábito original de ver televisão.

Já em outro estudo, poverty impedes cognitive function, os autores focaram diretamente nos impactos da pobreza nos mecanismos cognitivos, diferente daquele que focou nos efeitos psicológicos. Desse modo, a pobreza poderia ser vista como um tipo de tributo incidido sobre os recursos cognitivos da pessoa, implicando níveis maiores de distrações. É interessante mencionar, adicionalmente, o rigor científico procurado por esses pesquisadores de modo que pudesse atribuir uma relação causal entre a pobreza e sua interferência nas funções cognitivas. Assim, evidenciariam que a pobreza, apenas ela, já acarreta dificuldades na vida daqueles que a vivenciam, dificultando sua fuga.

Nesse aspecto, o estudo parte das preocupações orçamentárias prementes em que desviariam recursos cognitivos tais como atenção, foco e concentração para aquelas questões deixando em débito outras também relevantes para a vida como, por exemplo, pensamento lógico, controle executivo em tarefas estruturadas e etc. Assim, haveria um impacto significativo em seu desempenho temporário ou mesmo permanentemente. Em outras palavras, a baixa alocação cognitiva em outras tarefas ou desafios, devido à preocupação financeira, deixariam tais pessoas menos hábeis para a tomada de decisão e para ações pensadas e elaboradas, culminando em baixo desempenho e competitividade. Esse mecanismo de desvio cognitivo seria acionado por pensamentos intrusivos relacionados àquelas dificuldades. No mesmo artigo, os autores também descrevem os efeitos que tais preocupações exercem sobre a autorregulação, levando a escolhas indesejadas como, por exemplo, consumo de alimentos calóricos, adiantamento de recompensas ou gratificações e etc.

 Há, na verdade, grandes enlaces entre os estudos abordados aqui, já que as variáveis que geram as preocupações financeiras são praticamente as mesmas daquelas levantadas anteriormente como choques de renda, orçamento limitado e insuficiente, restrições de liquidez etc. Outra semelhança é nos comportamentos indesejados já que a autorregulação é afetada em ambos os estudos. Há inclusive, no segundo estudo apresentado, uma menção dos autores sobre a possibilidade de outros efeitos sobre a função cognitiva esteja operando, que não a pobreza, como o estado afetivo. 

Dito tudo isso, ambicionar em vencer o infortúnio econômico imposto à maioria de nós é ainda uma plausibilidade? 

Texto: Yuri Mourão – Especialista em Finanças e Controladoria – Ibmec Business School

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