Por Mateus Lincoln
No último sábado (22), em Santa Maria, região administrativa do Distrito Federal, uma multidão de jovens se reuniu no Ginásio Poliesportivo para participarem da Batalha de Rima pelo coletivo Kovil. No entanto, naquela noite, eles não se reuniram apenas para participar de mais uma batalha, além da celebração do aniversário de três anos do Kovil, os organizadores pensaram naquele encontro com um objetivo maior: arrecadar roupas, alimentos e demais insumos para as vítimas de um incêndio.
A ação social beneficiou famílias que ficaram desabrigadas após as chamas consumirem ao menos 30 barracos de madeira na região do Recanto das Emas, também no DF. Na madrugada daquela sexta-feira (21), mesmo com o trabalho de mais de 3 horas do Corpo de Bombeiros Militar do DF (CBMDF), não foi possível salvar as casas e nem os pertences dos moradores.
Durante a Batalha do Kovil (BDK), foram arrecadadas vestimentas, roupas de cama, calçados e mais. As doações foram entregues ao longo da semana na Sky Fit, localizada no Shopping do Recanto. A academia é um dos pontos de coleta, que repassa os itens ao Centro de Convivência do Idoso (CCI) e os entrega à administração regional do Recanto.
Yasmin Rabelo, 23 anos, membro da organização do Kovil, contou que a ideia de transformar o aniversário do coletivo em uma ação solidária surgiu de forma espontânea. “Um rapaz compartilhou no nosso grupo um vídeo sobre o incêndio. Aí decidimos aproveitar o evento para ajudar”, explicou.
A mobilização superou as expectativas. “Quando fazemos campanhas de agasalho, por exemplo, as doações são menores. Dessa vez, foi incrível ver como as pessoas se engajaram”, disse Yasmin. Ela também destacou as dificuldades de promover cultura em regiões periféricas. “Apesar de sermos o movimento cultural mais ativo de Santa Maria, ainda enfrentamos resistência da administração local”, afirmou.

Rima e identidade
As batalhas de rima são duelos de improvisação em que MCs competem criando versos espontâneos com rimas, humor, insultos e críticas sociais. No Brasil, a tradição remonta ao repente e à embolada, gêneros populares com desafios verbais acompanhados de pandeiro ou de viola. Nomes como Caju e Castanha e Lourival Batista se destacaram nessa prática, que também se uniram ao formato que herdado dos Estados Unidos e evoluíram ao jeito contemporâneo das batalhas de rap, realizadas ao vivo, onde os participantes disputam quem tem os melhores versos improvisados. É preciso ter uma vasta gama de referências, ter um conhecimento variado da língua portuguesa e saber adaptá-lo com gírias modernas e expressões regionais.
Rickelme Machado, conhecido como Rick, é um dos organizadores do Kovil. Para ele, as batalhas de rima vão além de competições. “É uma forma de expressão. Muitos jovens encontram ali um lugar onde podem se sentir acolhidos, onde ninguém os julga”, afirmou. Ele destacou que o hip hop, com seus elementos como o grafite, o break e as rimas, oferece um espaço de pertencimento para quem muitas vezes não se identifica com outros ambientes.

Rick também ressaltou a importância das batalhas como uma iniciativa popular que preenche lacunas deixadas pelo poder público. “O governo não ajuda. Se a gente for esperar por eles, não vai vir nada. É a periferia que tem que se movimentar”, disse. Ele citou como exemplo a Batalha do Caixote, que exige bom desempenho escolar dos participantes menores de 18 anos. “É um trabalho lindo, que mostra como a cultura pode incentivar a educação”, completou.
Yasmin, que também é estudante de Ciências Sociais na Universidade de Brasília (UnB), vê no hip hop uma ferramenta de resistência. “A cultura periférica renuncia às desigualdades e aos ataques que sofremos. É importante nos unirmos, porque juntos somos mais fortes”, disse.
Ela integra o Programa Institucional de Bolsa de Iniciação à Docência (PIBID), uma iniciativa da Capes que oferece bolsas a estudantes de licenciatura. “Entrei no PIBID por causa do meu envolvimento com a produção cultural. Quero levar o hip hop para as escolas, mostrando como ele pode ser uma ferramenta educativa”, explicou.
Rima delas
As MCs Elka e Japa foram as vencedoras da batalha daquele sábado. Elas ganharam diversas etapas e depois superaram dois concorrentes experientes, Prettyn e Cigganno, que eram os favoritos da competição. Elka Andrade, 24 anos, que, além de mestre de cerimônias, também é artista independente, compartilhou sua trajetória de superação.
Ela revelou que estava desanimada com as batalhas após um desempenho frustrante em uma competição anterior. “Eu estava muito frustrada. Na última batalha, eu estava ao lado de Hike MC e Caymmi, dois grandes nomes, mas não consegui me soltar por causa da pressão e ansiedade”, contou.

No entanto, a vitória no sábado marcou um momento de virada. “Naquele dia, eu me senti totalmente à vontade. Quando eu estava rimando, senti uma empolgação que não sentia há muito tempo. Foi incrível”, disse.
Ela destacou ainda a importância de ver outras mulheres na cena. “É muito gratificante saber que somos inspiração para outras minas. Muitas têm letras escritas, mas não têm coragem de mostrar. Ver uma mulher à frente, rimando, faz você se sentir representada”, afirmou.
Elka relembrou que acompanha batalhas desde os 9 anos de idade e começou a se inscrever em competições aos 14. No entanto, a falta de representatividade feminina a deixava insegura. “Eu tinha muita vontade de rimar, mas não me sentia acolhida em um ambiente dominado por homens. A primeira mulher que vi rimando foi Amanda Fulgaz, e ela foi uma grande inspiração para mim”, disse.
Hoje, Elka se vê no papel de inspirar outras mulheres, assim como Amanda a inspirou. “Quando ela me chamou para ser sua dupla na Batalha do Museu (BDM), competição tradicional em Brasília, eu chorei. Era minha inspiração me convidando para rimar junto. Isso mostra que estamos vencendo e fazendo o que sempre quisemos”, emocionou-se.
Para Elka, a batalha de rima é mais do que uma competição: é um espaço de acolhimento e transformação. “Às vezes, a gente nem imagina, mas o que fazemos dá força para muita gente começar sua caminhada. É isso que me motiva a continuar”, concluiu.

Inspiração e identidade
Rickelme Machado, o Rick, destacou a importância de Tiago, mais conhecido como Nero, como uma figura central no movimento hip hop e na criação do coletivo. “Ele foi um dos fundadores do Kovil e tem uma caminhada muito longa no hip hop. Inspirou muitos jovens, incluindo eu”, afirmou Rick.
Nero, que hoje está afastado das batalhas para focar nos estudos em outros projetos, foi descrito por Rick como uma referência fundamental em sua trajetória. “Ele me abraçou quando eu comecei, mesmo eu não sendo bom naquela época. Ele me disse: ‘Se continuar, você vai ser um dos monstros’. Isso me motivou”, relembrou.
Rick ressaltou que Nero teve um papel crucial em seu desenvolvimento. “Passamos um ano juntos nas batalhas, e vi como ele evoluiu e como eu evolui junto dele. Ele é como um irmão, uma figura paterna para mim”, disse.
A influência de Nero não se limita ao passado. “Até hoje ele é importante para mim. Mantemos contato, e ele continua sendo uma inspiração”, completou Rick. A trajetória de Nero no hip-hop, segundo o organizador, é um exemplo de como o movimento transforma vidas e cria laços fortes entre seus participantes.

Fonte: Correio da Manhã